domingo, 6 de novembro de 2011

novembro golpe planejanento dos espertos trabalho

14. Miguel Ximenez (documentado 1462-1505)
Os Anjos do Juízo Final, c. 1500
Têmpera e óleo sobre painel - 83 x 60 cm
Paris, Galeria G. Sarti
Galeria de Fotos G. Sarti

Survivor (O Sobrevivente) é um show de televisão que se popularizou (no Brasil foi criado o “No limite”), porque expõe a natureza humana – tanto o lado bom como o mau, mas principalmente o mau, porque este geralmente é mais interessante. A formação e dissolução de alianças, as estratégias para ganhar ou opor-se aos outros, a mentira, a fraude e a deslealdade capturam a atenção dos espectadores. Tudo isso é feito em nome do jogo, pela sobrevivência por mais um dia, e para ganhar o grande prêmio.

A Deslealdade no Trabalho

Recentemente, li comentários feitos por um psicólogo, que disse que a tática usada pelos participantes do Survivor não teria sucesso num ambiente de trabalho. O psicólogo disse que a colaboração e a confiança são ingredientes-chave para alcançar sucesso no trabalho.

Eu concordo que a colaboração e a confiança são importantes contribuições para o sucesso no trabalho. Pela minha experiência, no entanto, os espectadores assistem o Survivor porque o show apresenta os mesmos tipos de comportamento que eles vêem regularmente em seus locais de trabalho. Normalmente, eles vêem o comportamento do Survivor – a fraude e a manobra pelo ganho pessoal à custa dos outros – nos colegas e nas organizações para quem trabalham.

As culturas organizacionais freqüentemente encorajam a deslealdade e outros comportamentos do Survivor entre seus empregados. Podemos reconhecer facilmente os fatores que promovem esses comportamentos: objetivos incongruentes, mudança de coalizões, busca de desculpas, procura de culpados e uma história de tolerância para com as violações da confiança.

Isso coloca os empregados uns contra os outros – nem todos vão sobreviver, e alguns dos que sobreviverem serão beneficiados pelo corte. Esses cortes também promovem a construção de coalizões e encorajam a comunicação falsa ou ilusória para esconder as armações que se seguirão. As companhias que realizam esses golpes têm dificuldade para construir equipes eficientes e obter a cooperação dos trabalhadores. Também, são as que muitas vezes queixam-se de que os empregados não são mais leais aos seus colegas. Será que eles esperam, realmente, que os trabalhadores sejam leais a companhias que os tratam como mercadorias?

. Um restaurador trabalhando no
Reunião de St. Paul e St. Anthony,
painel em que a restauração "não começou"
Imagem a partir da história de
France 2 para log 20 horas do dia 08.05.11

Existem três tipos de deslealdade: (1) não intencional, (2) premeditada, e (3) oportunista. A deslealdade não intencional viola a confiança sem a intenção de fazer isso. Por exemplo, um trabalhador pode revelar, inadvertidamente, informações confidenciais sem a intenção de fazê-lo. Esse é o clássico deslize da língua.

A deslealdade premeditada consiste em entrar numa relação de confiança para trair a outra pessoa. Os espiões são exemplos de deslealdade premeditada. Isso acontece, muitas vezes, durante as fusões de empresas. Por exemplo, os diretores da empresa adquirente garantem aos executivos da companhia adquirida que eles terão emprego na nova organização. Eles sabem que, assim que obtiverem informações importantes dos empregados, ou que os empregados completarem projetos críticos de curto prazo, a companhia vai demiti-los.

Mestre de Naumburg
Cristo na Cruz, detalhe da tela de coro
Naumburg Catedral de São Pedro e São Paulo
Foto: Imprensa

Os traidores oportunistas pretendem trair a outra parte mas não entram na relação com essa finalidade. As circunstâncias adequadas e a crença de que eles vão ganhar mais através da traição do que agindo com integridade fazem com que o oportunista ceda à tentação. O traidor oportunista avalia os benefícios potenciais da deslealdade, a probabilidade de ser pego e a severidade das penalidades que sofrerá caso seja descoberto.

A maioria das traições são oportunistas. Colegas de trabalho não têm a intenção de trair uns aos outros. Eles simplesmente o fazem quando surge a oportunidade. As fofocas, as punhaladas pelas costas, o crédito não merecido por trabalhos executados por outros colegas, são exemplos de deslealdade no local de trabalho.

As organizações que experimentam falta de confiança dos colegas geralmente cometem atos desleais não intencionais ou oportunistas. Delegação fraca, falta de comunicação, mudança constante de prioridades. Estilos abusivos de gerenciamento e reorganizações repetidas para encobrir a falta de bom gerenciamento são exemplos de comportamentos que os empregados podem perceber como deslealdade em relação à sua confiança. Embora as ações pareçam mínimas isoladamente, elas se somam para criar uma cultura caracterizada pela falta de confiança e por sentimentos de deslealdade.

As organizações fazem tudo isso em nome do jogo dos negócios (“Foi uma decisão de negócio” ou sacrifios como dizem depois da armação e fraude), e da sobrevivência por mais um dia. Para construir e manter a confiança dentro do local de trabalho, devemos mudar o jogo que estamos jogando.

Sete Passos para Curar uma Relação Desleal de Trabalho

A deslealdade à confiança no local de trabalho é comum, e seus efeitos são duradouros. Os trabalhadores experimentam a traição de seus colegas, de seus dirigentes e da própria organização. As experiências de deslealdade vão desde a falta de comparecimento a um compromisso até a sabotagem deliberada.

Reconstruir relações de confiança e vencer sentimentos de deslealdade são elementos essenciais para muitas organizações. A falta de confiança, a desilusão, e o cinismo muitas vezes contaminam as organizações. Quando dou consultoria a algumas organizações, as pessoas me pedem, muitas vezes, curas rápidas para os problemas de confiança do pessoal entre si e na organização. Infelizmente, as curas milagrosas geralmente não funcionam.

Uma vez violada uma relação de confiança, o reparo não é fácil. As pessoas reconstruem a confiança lenta e deliberadamente. As pessoas que foram vítimas de violações procuram permanentemente exemplos de deslealdade. Elas estão em constante alerta. Para reparar sua reputação prejudicada, o traidor deve demonstrar continuamente seu melhor comportamento.

Os sete passos vão ajudar a reparar o prejuízo causado por relações desleais. Esses passos podem parecer uma terapia, porque são parte de um processo terapêutico para indivíduos e organizações.

Passo UM: Observe e conheça a situação. Comente sobre a falta aparente de confiança e a deslealdade percebida. Reconheça conscientemente o que as pessoas percebem subconscientemente, ou aquilo que comentam na intimidade.

Passo DOIS: Aborde sentimentos e emoções. A deslealdade, e sua percepção, machucam. Você deve abordar as emoções que as pessoas estão experimentando. Deixe-as falar em segurança. Ouça. Empatize. Compreenda o que as pessoas experimentaram e de onde elas estão vindo. Este passo não se destina a julgar quem está certo ou errado. Ao invés disso, destina-se a compreender – compreender como as pessoas percebem o que aconteceu com elas, e compreender como se sentem a respeito.

Passo TRÊS: Obtenha suporte. Os programas efetivos de mudança pessoal encorajam as pessoas a obter suporte. O mesmo é verdadeiro para os programas de mudança na organização. Obtenha auxílio de especialistas que podem facilitar o processo de cura, ou que já passaram por situações semelhantes. Os empregados podem necessitar do apoio de conselheiros para guiá-los ao longo do processo de mudança.

Francisco Goya (1746-1828),
A Conspiração (The Witches), 1797-1798
Óleo sobre tela - 43 x 30 cm
Madrid, Fundación Lázaro Galdiano
Foto: Fundación Lázaro Galdiano

Passo QUATRO: Aprenda com a experiência. Ressignifique a experiência, para aprender com ela. O que aprendemos com isso? O que vamos fazer de maneira diferente na próxima vez? Como podemos impedir que isso aconteça de novo? Como podemos olhar para a experiência de modo diferente, a fim de beneficiar-nos dela? Você não pode mudar o passado, mas pode vê-lo de modo diferente, procurando descobrir o que aprendeu com essa experiência.

Passo CINCO: Assuma a responsabilidade. Como você contribuiu para a situação? Que papel você exerceu na deslealdade? Este passo pode incluir o reconhecimento de seus motivos e expectativas.

Passo SEIS: Perdoe. Perdoe a si próprio e perdoe os outros. O perdão é terapêutico. O perdão é importante para fazer a situação passar. Através do perdão você libera a si próprio, a outra pessoa e o evento. O perdão não significa que você seja ingênuo ou tolo. Você deve tomar as providências necessárias para proteger-se contra novas traições.

Passo SETE: Vá em frente. Deixe a situação passar e vá em frente. Mais uma vez, isso não significa que você deva esquecer. Você pode lembrar da situação e o que você aprendeu dela, de modo a não cometer novamente os mesmos erros. Focalize-se no futuro.

Carl Gustav Carus (1789-1869)
Fausto e Wagner com o poodle, depois de 1851
Carvão aumentado com branco guache - 52,2 x 40,6 centímetros
Dresden, Staatliche Kunstsammlungen
Foto: Hans-Peter, Staatliche Kunstsammlungen

Este processo funciona tanto para os indivíduos como para as organizações. As organizações, muitas vezes, tentam ignorar as traições percebidas ou encobri-las porque acham que não são importantes. Os atos que conduzem a sentimentos de traição podem parecer pequenos e não intencionais. Brevemente, a organização vai se encontrar atolada na desconfiança e no cinismo. Os dois primeiros passos do processo de cura são críticos. Para reconstruir uma relação de confiança com os empregados, a organização deve reconhecer o que foi que ela fez, e deixar que os empregados expressem seus sentimentos.

Os dirigentes podem usar este processo para ajudar os trabalhadores em conflito a curar e restaurar sua relação de trabalho.

A traição da confiança pode destruir as relações de trabalho. Use o processo de cura para ajudar a reparar as relações prejudicadas. Mas não espere milagres, porque, uma vez violada, a confiança é difícil de restaurar.

Zötl Aloys (1832-1887)
O Vampiro de 1882
Aquarela sobre papel - dimensões desconhecidas
Coleção particular
Foto: Christian Estúdio Baraja

FAUSTO, DE GOETHE

- UM EXERCÍCIO INTERPRETATIVO -

Nota prévia

Para este exercício baseei-me, fundamentalmente, na tradução de Fausto, de João

Barrento, publicada pelo Relógio D’Água Editores para o Círculo de Leitores, em 1999; os

versos transcritos são referidos pelos seus números entre parêntesis.

Quanto à interpretação do “livro de sete selos que aterra os profanos e deslumbra os

iniciados”, no dizer de Maria Amália Vaz de Carvalho

1

, como não sou iniciado, tive de me

socorrer, principalmente, de Max Heindel, um iniciado rosicrucista, que em Mistérios das

Grandes Óperas

2

faz uma análise, infelizmente parcial, desta obra grande da literatura mundial.

Nestas circunstâncias há algumas passagens cuja interpretação é da minha responsabilidade.

INTRODUÇÃO

Formalmente, Fausto é uma peça de teatro em verso. Principia com uma

Dedicatória a que se segue um Prelúdio no Teatro e um Prólogo no Céu. O corpo

principal contém duas partes: a primeira dividida em vinte e cinco cenas e a segunda em

cinco actos subdivididos em cenas.

O tema base é a vida lendária do Doutor Faust, um mago e alquimista alemão

quinhentista, mas cuja vida foi envolvida num manto de fantasias tecido pelas proezas

mágicas que lhe foram atribuídas, o que torna muito difícil separar o real do imaginário.

O acontecimento mais relevante da sua vida foi, ou terá sido, um pacto com o Diabo

3

.

O Doutor Faust

Johann Georg Faust terá nascido por volta de 1466 em Helmstadt, próximo de

Heidelberg, ou em 1480 em Knittlingen, Württemberg, ou ainda em Roda, província de

Weimar, e usou, também, os nomes de Johann Sabellicus ou Georg Faust.

O mais antigo registo da sua vida que se conhece é uma carta do célebre

ocultista, mago e taumaturgo Johann Tritheim (1462-1516), de 20 de Agosto de 1507,

dirigida a Johann Wirdung

4

em resposta a um pedido de informações sobre um tal

Johann Sabellicus que era esperado em Hassfurt, Baviera. Segundo Tritheim, tratava-se

de um facundo intrujão, que saltava de emprego em emprego, que lisonjeava um

1

Citada por João Barrento na ob. cit. p. 71.

2

Misterios de las Grandes Operas, Barcelona, Libreria Sintes, s/data..

3

Note-se que há autores que pretendem que o pacto satânico é uma prática mais comum do que

vulgarmente se supõe.

4

Matemático e astrólogo da corte Bávara.2

público simples e ingénuo para glória e lucro próprios, e que devia ser chicoteado por

blasfémia. Acrescentou, ainda, que por recomendação de Franz von Sickingen

5

(1481-

1523) Johann Sabellicus fora admitido como professor em Kreuzach, mas foi obrigado a

fugir por ter abusado de alguns rapazes a seu cargo.

Em 1509 Faust estudava na Universidade de Heidelberg onde um professor

elogiou a sua mente brilhante. Segundo Johannes Weyer (1515-1588)

6

e Philipp

Melanchthon (1497- 1560)

7

, Faust partiu depois para Carcóvia a fim de estudar magia.

É possível que nessa altura tenha estado em Praga onde parece ter-se familiarizado com

os segredos da criação do golem

8

.

Segundo a lenda, a ânsia de tudo saber levou-o, entretanto, a firmar um pacto

com o Diabo, graças ao qual terá tido tudo quanto quis: poder, sabedoria, belas

mulheres, como Helena de Tróia

9

e as concubinas do sultão da Turquia (!), viagens para

onde desejasse, desde as profundezas dos infernos até às estrelas mais distantes, o que

lhe permitia deslumbrar os seus alunos da Universidade de Erfurt com a descrição do

que vira, quando não os aterrorizava com medonhas evocações, como a do gigante

Polifemo

10

. De facto, Faust tinha ido para Erfurt em 1513, onde viveu sete anos, parte

dos quais no mosteiro de Maulbroon cujo abade teria sido aliciado com a promessa de

ouro alquímico, dando aulas sobre Homero na universidade local.

Em 1520 o pregador da catedral tentou convencer Faust a arrepender-se dos seus

erros, mas este confessou, cortesmente, ter assinado um pacto com o Diabo e afirmou

não estar arrependido porque confiava mais no demónio do que em Deus. Faust foi

imediatamente expulso de Erfurt e de outras cidades em que pretendeu fixar-se por ser

considerado um satanista, quer por católicos quer por protestantes.

Em 1523 terá passado por Leipzig onde terá realizado uma proeza que ficou

célebre: na Auerbachs Keller levou, sozinho, um pesado barril de vinho da cave para um

andar superior ... limitando-se a cavalgá-lo

11

.

Johannes Weye, Philipp Melanchthon e outros autores dizem que Faust morreu

em 1540, ou 1541, possivelmente em Würthenberg. A lenda, porém, pretende que o seu

fim foi terrível: o diabo apoderou-se da sua alma, desfez o corpo em pedaços que lançou

para um monte de esterco, arrancou-lhe os olhos e colou-os a uma parede.

5

Uma das figuras mais notáveis do primeiro período da Reforma.

6

Médico holandês, ocultista e demonologista, discípulo e seguidor de Cornelius Agripa.

7

Professor e teólogo alemão, foi um líder eminente da Reforma e amigo de Lutero.

8

O golem faz parte da lenda judaico-cabalista surgida nos princípios da Era Cristã, quando alguns rabinos

quiseram rivalizar com o Senhor e criar um ser vivo e inteligente por meio da magia. Assim, num

Midrasch dos séculos II e III, Adão, na sua primeira fase, é descrito como um golem de grandeza e força

cósmica, mas ainda sem vida e sem o dom da palavra. No século XII, a seita dos Khassidim elaborou 221

combinações diferentes das letras do alfabeto hebraico, tendo chegado à palavra emeth, que significa

“verdade”, a qual animava a figura de um homem pequeno, semelhante a uma criança de dez anos,

moldada em argila vermelha, quando escrita na sua fronte. O golem era um dócil escravo do seu criador,

mas cedo começava a crescer e rapidamente se transformava num gigante; então o mágico apagava a

primeira letra e como a palavra meth significa “morte”, o desgraçado desfazia-se em pó.

9

Na Mitologia Grega, Helena, filha de Zeus e de Leda,, casou com Menelau, rei de Esparta, mas durante a ausência

do esposo foi raptada pelo troiano Páris, o que deu origem à Guerra de Tróia, imortalizada por Homero na Ilíada.

Com a vitória dos gregos, depois de um cerco de dez anos, Helena regressou a casa com o marido. Por ser a mulher

mais bela que alguma vez pisou a Terra, conquistou a imortalidade, após o que se tornou mulher de Aquiles (ou

melhor, da alma de Aquiles, pois este já tinha morrido em Tróia), com o qual passou a viver na ilha de Leuce, e de

quem teve um filho, Eufórion (vidé nota 21 infra).

10

Figura mítica da Odisseia, de Homero.

11

A Auerbachs, que séculos depois Goethe frequentou, é presentemente um dos cinco restaurantes mais

famosos do mundo.3

* * *

Esta lenda foi tema de inúmeras obras literárias, a primeira das quais foi

publicada em 1587 por um autor anónimo, com o título Historia von D. Johann Faustus

dem weitbschreyten Zauberer und Schwarzbünstler (História do Doutor João Fausto,

mui afamado mágico e necromante), a que se seguiu, em 1604, a Tragicall History of

the Life and Death of Doctor Faustus, uma versão em inglês de Christopher Marlowe, e

muitas outras, a última das quais terá sido o romance Doktor Faustus (1947) de Thomas

Mann.. Será curioso referir que Fernando Pessoa iniciou uma trilogia dramática, Fausto

– Uma Tragédia Subjectiva, que não passou, porém, de um Primeiro Fausto inacabado.

Para além das produções literárias, diversos compositores utilizaram o tema para

compor peças musicais, como a Eine Faust-Ouvertüre (1840) de Wagner, a famosa

ópera Fausto (1859) de Gounod, etc., enquanto realizadores cinematográficos trataram

o tema em numerosos filmes, o primeiro dos quais penso ter sido Faust et Marguerite

(1897) de Georges Méliès.

Mas a lenda não ficou por aqui e deu origem a uma outra, a de um livro

intitulado O Mestre Infernal do Dr. Faust, que ensinaria a arte de controlar espíritos e

de tornar o próprio Diabo subserviente ao mestre, livro este que estaria enterrado sob

um espinheiro por detrás do Castelo de Chemnitz, Saxónia, na estrada da floresta de

Küch. Há quem pretenda que os praticantes de magia negra têm procurado,

afanosamente, este livro, mas em vão.

* * *

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) tinha apenas seis anos quando

assistiu a uma representação da lenda do Doutor Faust num teatro de fantoches. A peça

impressionou-o e mais tarde estudou cuidadosamente as duas primeiras obras sobre esta

personagem acima referidas. Na sequência deste estudo compôs um esboço, o Urfaust

(Proto-Fausto, ou Fausto Zero), que iria ser publicado, postumamente, em 1887; em

1791 escreveu outro esboço que intitulou Faust, ein Fragment (Fausto, um fragmento),

que ficou inédito, até que em 1808 concluiu uma versão definitiva que intitulou Faust,

eine Tragödie (Fausto, uma tragédia).

Tratava-se, porém, de uma primeira parte, uma vez que a problemática humana

do Dr. Faust continuava a intrigá-lo, em especial quando Gotthold Lessing

12

explorou a

possibilidade do mágico ser salvo se Deus reconhecesse a sinceridade e honestidade da

sua busca de conhecimentos; assim, em 1826 começou a escrever uma segunda parte

que iria ser publicada em 1832, nas vésperas da sua morte, a que deu o título de Faust.

Der Tragödie zweiter Teil in fünf Akten (Fausto. Segunda parte da tragédia, em cinco

actos).

O ENREDO

12

Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), dramaturgo e crítico alemão, um dos obreiros do Iluminismo germânico.

Estudou em várias universidades, nomeadamente na de Leipzig, onde escreveu a sua primeira peça, Der Junge

Gelehrte (O Jovem Sábio), a que se seguiram outras obras como Der Freigeist (O Livre Pensador), Die Juden (Os

Judeus), etc.4

A acção começa ainda no Prólogo com uma aposta, entre Mefistófeles e o

Senhor sobre a posse da alma de Fausto que há muito lutava por obter conhecimento; o

Senhor diz que Fausto serve o seu plano, uma vez que será levado em direcção à luz,

mas dá liberdade de acção a Mefistófeles para o desviar

13

.

Primeira Parte

Desgostoso de verificar que toda a sua vida de estudo a nada conduzira, Fausto

invoca o Espírito da Terra mas não obtém qualquer ajuda da sua parte. Assim, quando

Mefistófeles vem ter consigo, não hesita em negociar um pacto, que assina com o seu

sangue

14

, segundo o qual aquele dar-lhe-á tudo quanto quiser em troca da sua alma.

O seu primeiro desejo é recuperar a juventude, o que lhe é prontamente

concedido na cozinha da bruxa, após o que abandona tudo para partir em busca de

aventuras, sempre acompanhado por Mefistófeles. É nesta ânsia de viver uma vida

perdida em vãos estudos que encontra Margarida

15

, uma jovem bela, pura e inocente por

quem se apaixona. Os sortilégios de Mefistófeles levaram a jovem a apaixonar-se e a

deixar-se seduzir. Porém, satisfeita a sua luxúria, Fausto abandona-a, apesar de ter

ficado grávida.

Profundamente arrependida, triste e envergonhada, Margarida chora a morte da

mãe, vítima de um soporífero que Mefistófeles lhe ministrara para que a filha pudesse

receber o amante na tranquilidade da sua alcova; chora, também, a morte do irmão, um

soldado que viera para a vingar mas que não conseguiu evitar uma estocada fatal de

Fausto, guiada por Mefistófeles; e sofre com o desprezo a que a comunidade a votara.

Desesperada, a jovem afoga o seu próprio filho recém nascido, mas é descoberta, presa

e condenada à morte.

Durante o sabath da Noite de Walpurgis

16

, Fausto teve uma visão, a de

Margarida no fundo do cárcere; atormentado pelos remorsos, parte para a tirar da prisão,

mas a jovem, embora feliz por voltar a ver o seu amado, prefere assumir as suas

responsabilidades e aceitar, resignadamente, o justo castigo, limitando-se a pedir a Deus

que a aceite. E uma voz vinda de cima, responde: “Está salva!” (4612).

Segunda Parte

A segunda parte começa com Fausto a recuperar do seu desastroso caso de amor

na corte do Imperador, cujo despesismo havia arruinado as finanças do estado.

Mefistófeles, que o precedera disfarçado de bobo, tinha informado o Imperador de que,

nos seus domínios, havia muitos tesouros enterrados que o povo fora escondendo dos

invasores, e que toda essa riqueza era sua propriedade. Fausto, entretanto chegado à

corte, providencia no sentido da moeda corrente, o ouro, ser substituída por notas

13

Goethe ter-se-á inspirado no livro bíblico de Job para criar esta aposta..

14

“O sangue é seiva como outra não há” (1740), diz Mefistófeles.

15

Gretchen, no original alemão. O nome de Margarida, por que ficou conhecida nos países latinos, foi-lhe dado por

Jules Barbier e Michel Carré, autores do libreto do Fausto, de Gounod.

16

A Noite de Walpurgis é a de 30 de Abril para 1 de Maio, durante a qual se celebrava, desde tempos imemoriais, o

início do Verão com ritos pagãos e práticas de feitiçaria. O nome vem de uma missionária inglesa, Santa Walpurgis

(c. 710-777), abadessa do convento beneditino de Heidenheim, cujo dia festivo é o 1º de Maio. A crença popular

refere que em certos locais, como as montanhas de Harz, na Alemanha, as feiticeiras se reuniam com o Diabo durante

essa noite.5

promissórias sobre o valor desses tesouros; a corte é inundada por papel moeda e a crise

financeira fica ultrapassada; no entanto, os fundamentos do império foram substituídos

pelo frágil papel.

Resolvida a situação, o Imperador quer divertir-se e pede a Fausto para conjurar

os espíritos de Páris e de Helena de Tróia; este acede e a corte admira o que se pode

considerar uma sucessão de quadros vivos. Fausto, fascinado pela beleza de Helena,

sente ciúmes quando Páris a abraça e salta para dentro do círculo mágico para os

separar, mas tomba inconsciente.

O segundo acto começa no velho laboratório de Fausto, onde Wagner, o seu

fâmulo, seguindo as instruções do seu ausente mestre, cria, no interior de um frasco e à

margem dos meios naturais de concepção, um homúnculo, um ser de fogo com uma

alma e um espírito mas sem um corpo material

17

. O homúnculo leva Mefistófeles e o

ainda inconsciente Fausto para o mundo clássico da Grécia, onde, nos campos da

Parsália, se celebra a Noite de Walpurgis. Fausto recupera os sentidos e o seu primeiro

desejo é encontrar Helena, enquanto o homúnculo deseja transformar-se num homem

verdadeiro, livre da retorta onde tinha de viver; uma discussão entre dois filósofos

clássicos, Anaxágoras e Tales, lança luz sobre o meio de concretizar os seus desejos:

unir-se com o elemento água. É Proteu

18

quem o conduz, sempre dentro do frasco, até o

Oceano, em cujas águas entra a fim de se unir com Galateia

19

; a retorta parte-se sob os

pés da deusa, a essência feérica do homúnculo entra nas águas e esta espécie de união

sexual mística reúne, harmoniosamente, os quatro elementos.

Entretanto, Fausto, cavalgando o centauro Quíron

20

e guiado pela profetisa

Manto

21

, procura Helena no submundo, mas é Mefistófeles, disfarçado de Fórcide

22

,

quem induz a bela mulher a ir viver com Fausto no seu castelo do Norte. Desta união,

feliz e harmoniosa, nasce um filho, Eufórion

23

, que procura, como o pai, subir acima do

mundo terrestre, voar nas alturas e tomar os céus de assalto. Porém, tal como Ícaro

24

,

Eufórion morre e a união de Fausto com Helena quebra-se e esta parte para os domínios

subterrâneos de Perséfone

25

com a alma do seu filho.

O acto seguinte mostra-nos um Fausto muito diferente, que aspira criar algo de

grandioso. Ao poisar a vista no mar, imagina uma vasta terra conquistada às águas, onde

os homens vivem livres e felizes. É com este projecto em mente que regressa à corte do

Império, agora em guerra. Com a ajuda do eterno Mefistófeles, Fausto leva o imperador

à vitória sobre os seus inimigos e, em paga, reclama a posse de toda a linha de costa do

seu império, a fim de dar corpo ao seu grandioso projecto, a criação de um paraíso na

terra, que o Imperador aceita e que o Arcebispo da corte vê como fonte de mais

rendimentos para a Igreja.

17

Será curioso comparar o homúnculo de Wagner, uma alma e um espírito sem corpo material, com o golem do

Doutor Faust, um corpo material sem alma nem espírito, referido na nota 2 supra.

18

Profeta que mudava constantemente de forma a fim de poder furtar-se aos pedidos que lhe faziam para profetizar.

19

Uma das Nereides, mas que neste drama representa Afrodite, a deusa da beleza e do amor.

20

Filho do titã Cronos e de Fílira, Quíron foi o mais famoso dos centauros. Vivia numa gruta do monte Pálion, na

Tessália, e era um sábio e um médico divino. Amigo dos mortais, Quíron foi preceptor de diversos heróis gregos,

como Castor e Pólux, Peleu e o seu filho Aquiles, Jasão e o grande Asclépio, por ele iniciado nos segredos da

Medicina. O fim de Quíron foi trágico; Heracles atingiu-o, acidentalmente, com uma flecha que havia sido embebida

no veneno da Hidra de Lerna que produzia ferimentos incuráveis; apesar dos seus conhecimentos, Quíron não

conseguiu sarar a ferida e passou a sofrer dores horríveis; desesperado, pediu a Zeus que lhe permitisse renunciar à

imortalidade o que lhe foi concedido, tendo morrido em paz.

21

Profetisa e sacerdotisa de Apolo, considerada filha de Tirésias, o vidente cego.

22

Nome com que, no terceiro acto da segunda parte, Mefistófeles oculta a sua identidade.

23

Goethe faz uma adaptação da passagem do mito de Helena referida na nota 7 supra, e para não suscitar dúvidas até

dá o nome de Eufórion ao filho de Fausto.

24

Filho de Dédalo; obcecado pela ideia de voar, construiu umas asas de cera e, ignorando os avisos do pai,

aproximou-se demasiado do Sol; o calor derreteu a cera e o pobre sonhador precipitou-se no mar, morrendo.

25

Filha de Zeus e de Deméter, Perséfone foi raptada por Hades, deus do mundo dos mortos, do qual foi feita rainha.6

O último acto apresenta-nos Fausto observando os trabalhos de construção dos

diques e a progressiva conquista das terras às águas do mar. Porém, a localização de

uma casa com capela, onde reside um velho casal, Baucis e Filémon

26

, prejudica o seu

plano. Mefistófeles envia os seus homens de mão para os desalojar, mas estes excedemse e o casal é morto e a casa totalmente destruída pelas chamas. Fausto deplora a

tragédia e acaba por perder a vista. Então, Mefistófeles faz-lhe crer que os trabalhadores

estão prestes a completar a obra, quando, na realidade, estão a abrir a sua sepultura. E o

mágico morre na convicção de que o seu sonho humanista está prestes a ser

concretizado.

Na cena final, Mefistófeles vai à sepultura cobrar o pacto; os anjos, porém,

descem das alturas e, enquanto alguns o distraem, outros levam a alma de Fausto à

presença de Maria, a Mãe Gloriosa. O espírito de Margarida intercede por ele e a Divina

Mãe permite que o seu espírito passe às esferas mais elevadas.

O drama termina exaltando o papel da anima no processo iniciático:

“Tudo o que deve morrer não é senão reflexo

Tudo o que é imperfeito encontra aqui a perfeição

Tudo o que é mistério aqui encontra a luz

A Mulher em todos nós mostra-nos o nosso caminho”

27

UMA INTERPRETAÇÃO

Como disse na nota prévia, a interpretação de algumas passagens de Fausto é da

minha responsabilidade; é por aqui que vou começar.

“Segundo antigo ritmo, o Sol

Com as esferas canta uma canção” (243-244)

Com esta alusão clara à música das esferas, penso que Goethe quis assinalar o

simbolismo cósmico da sua obra, cuja acção se desenrola no nosso mundo sob o olhar

do nosso pequeno deus, um deus menor porque está em evollução, um homem de um

deus maior, no dizer de Fernando Pessoa

28

.

“O pequeno deus do mundo não mudou

Desde o dia primeiro mui singular ficou” [fala de Mefistófeles] (281-282)

* * *

26

Zeus e Hermes costumavam vaguear pela Frigia incógnitos, mas não encontravam abrigo junto de nenhum mortal a

não ser em casa de Baucis e Filémon. Os deuses puniram a região com um grande dilúvio do qual apenas se salvou o

bondoso casal de velhos, cuja casa foi transformada em templo.

27

Na edição que tenho vindo a seguir, a tradução destes últimos versos é a seguinte: “Tudo o que passa / É símbolo

só; / O que não se alcança / Em corpo aqui está; / O indiscritível / Realiza-se aqui; / O Eterno-Feminino / Atrai-nos

para si” (12104-12111). Os versos apresentados são a tradução, da minha autoria, de um ensaio, em inglês, intitulado

The Alchemical Drama of Goethe, de Adam McLean (in http://www.levity.com/alchemy/faust.html); no plano do

simbólico, parece-me a versão inglesa mais significativa do que a de João Barrento.

28

In No Túmulo de Christian Rosenkreutz, in Rosea Cruz, Lisboa, Edições Manuel Lencastre, 1989, p .239.7

O mito de Fausto, diz Max Heindel

29

, é tão antigo quanto a humanidade e, como

tal, contém uma grande verdade cósmica, a evolução do homem durante a presente

época e o papel desempenhado, neste processo, pelos filhos de Seth e os de Caim.

Fausto representa a vanguarda da raça humana, sendo por isso considerado louco

e extravagante pelo comum dos mortais menos avançados. Porém, a sua vida de estudo

não lhe proporcionou o verdadeiro saber; convicto de que, por essa via nada alcançaria

que pudesse ensinar à humanidade, a fim de a salvar

30

, entregou-se à magia na

esperança de que, pela força da mente, o mistério se abrisse perante si

31

.

Nestas condições, Fausto invocou o Espírito da Terra e as palavras que este lhe

dirigiu são uma excelente matéria de meditação, diz Max Heindel

32

, pois representam,

no plano místico, o que o candidato sente quando pela primeira vez se apercebe da

realidade deste exaltado ser.

“Nas vagas da vida, vendavais de acção,

Me vês subir, descer,

Tecer fios neste pano!

Nascer e morrer,

Eterno oceano,

Alternando a trama,

A vida uma chama,

E sentado ao tear vibrante do Tempo

Teço à divindade o seu manto vivo” (501-509)

Fausto, porém, não conseguiu obter do Espírito da Terra os almejados

ensinamentos, tal como não iria dominar o Espírito da Negação porque não foi pelo

poder da sua alma que entrou em contacto com qualquer um deles

33

.

Goethe serve-se, a propósito, das figuras do Espírito da Terra e de Mefistófeles

para nos prevenir contra pessoas e espíritos que se oferecem para satisfazer os nossos

desejos, uma vez que, por via de regra, perseguem fins que nos são adversos. A vinda

de Mefistófeles serve, também, para ilustrar outra verdade esotérica: a via pela qual um

espírito entra num determinado espaço é a mesma por onde tem de sair.

“Para o demo e os espectros há um preceito:

Por onde entram voltam a sair;

À primeira são livres, à segunda obedecem” (1410-1412)

É este preceito que faz com que o Cristo, que penetrou na Terra pelo corpo vital

de Jesus, só possa sair, de volta ao Sol, através do mesmo veículo

34

.

Mefistófeles, um espírito marciano, quis ficar na posse de um pouco do sangue

de Fausto a fim de o poder controlar, uma vez que o sangue, seiva como outra não há

35

,

contém ferro, um metal de Marte. Assim, tal como os filhos de Caim foram guiados

pelos espíritos luciferinos, Fausto foi guiado – e controlado – por Mefistófeles, mas,

curiosamente, esta situação permitiu-lhe conhecer e viver, tanto a profundidade dos

pesares da alma humana, como a exuberância das suas alegrias, condição sine qua non

29

Misterios de las Grandes Operas, pp. 8-9.

30

Cf. versos 371 e 372.

31

Cf. versos 377 a 379.

32

Ob. cit. p. 26

33

Id. p.355

34

Id. p. 27

35

Cf. v. 17408

para sentir a compaixão necessária para cooperar na elevação da Humanidade.

Mefistófeles é, pois, um espírito que só quer o mal mas que acaba por fazer o bem.

Margarida representa os filhos de Seth e Fausto os filhos de Caím. Margarida

era pura, mas não virtuosa porque nunca havia sido tentada e a tentação está para o

desenvolvimento da alma como o exercício físico para o desenvolvimento muscular

36

; o

encontro com Fausto trouxe a ambos miséria e sofrimento mas que, no final, os iriam

conduzir de volta às gloriosas regiões de onde tinham vindo

37

.

Goethe censura o comportamento da Igreja Católica. Para Fausto conquistar o

coração de Margarida, Mefistófeles colocou, no seu quarto, valiosos presentes; a mãe,

indecisa, levou-os ao padre e este, em vez de a aconselhar a desprezá-los, ficou com eles

para adornar um qualquer ídolo. E assim Lúcifer, graças à cobiça da Igreja, conquistou

duas almas, a da mãe e a do irmão de Margarida, por causa de quem tinham encontrado

a morte

38

. Já no final do drama é o Arcebispo que, mais do que a felicidade da

humanidade no paraíso sonhado por Fausto, se interessa pelos dízimos, rendas, censo e

o que mais haja

39

que as novas terras lhe irão proporcionar.

No fundo de uma enxovia, aguardando o carrasco, Margarida, sofrida e

arrependida, recusa a salvação que Fausto lhe oferece, assim se redimindo e acabando

por ser aceite no Novo Céu e na Nova Terra

40

.

Na segunda parte Max Heindel vê o papel de Fausto na corte do Imperador

como um factor importante nos assuntos de estado para os quais os filhos de Caim têm

uma inclinação natural, enquanto os filhos de Seth a têm para os assuntos da igreja

41

.

O episódio do homúnculo, omitido por Max Heindel, parece-me ilustrar o valor

da perseverança na busca de conhecimentos, perseverança essa que Goethe enaltece ao

pôr na boca de anjos a seguinte fala:

“Pois só àquele redenção damos

Que em esforço persevera” (11936 e 11937)

Ora Wagner, o discípulo de Fausto, não seguiu a via diabólica do seu mestre,

antes perseverou no esforço de chegar à verdadeira Sabedoria pela via correcta, a única

que permite o crescimento anímico, e a sua recompensa foi o êxito que obteve com a

criação de um homúnculo, não um grosseiro e estúpido golem, mas um ser capaz de

ouvir os conselhos dos antigos filósofos e de obter o que lhe faltava para ser um homem

verdadeiro. Wagner ultrapassou, assim, o seu mestre

42

. Por outro lado, a figura do

homúnculo pode, também, querer dizer que a via do homem que busca a luz, através de

um novo nascimento, se encontra em si mesmo e que tem de dar a mão ao seu anima

para a encontrar.

Quanto aos ideais relativos a um novo paraíso terreno que Fausto passou a

acalentar, Max Heindel atribui-os ao “amor de (...) Helena, (...) um amor de natureza

mais elevada e espiritual e inteiramente separado da ideia de sexo e paixão

43

. Confesso

36

Id. p. 17

37

Id. pp. 45-46

38

Cf. vv 2839 e 2840

39

Cf. vv 11035 e 11038

40

Misterios de las Grandes Operas, p. 54

41

Ibid.

42

Cf. vv 2839 e 2840

43

Misterios de las Grandes Operas, p. 559

a minha dificuldade em acompanhar esta leitura, pois vejo Helena como representando a

beleza clássica, mas também a sensualidade não reprimida do mundo grego, que lhe

permite ter relações sexuais com numerosos homens, incluindo Aquiles, que veio da

terra dos mortos para a possuir

44

, um mundo onde Mefistófeles não pode exercer os

seus malefícios porque ali não existe o sentimento do pecado. Assim, vejo a ligação de

Fausto com Helena como o primeiro factor positivo da sua vida após o pacto diabólico

por ser incólume ao poder diabólico.

Por fim, penso que Margarida haja sido o segundo e decisivo factor positivo,

pois foi ela, livre de Mefistófeles e já redimida dos seus erros, quem intercedeu junto da

Grande Deusa Mãe, Maria, para salvar o seu amado Fausto, cujos erros tinham sido,

entretanto, pagos com o sofrimento e com os ideais humanitaristas que nortearam os

últimos anos da sua existência.

* * *

Em suma, Faust eine Tragödie é um drama alquímico-espiritual cuja acção se

desenrola ao longo da transmutação do homem comum num ser superior, tendo como

protagonista a figura mitificada do Doutor Johann Faust.

Fausto passa por várias transmutações. A primeira, que se insere no movimento

literário e romântico Stürm und Drang

45

, de que Goethe foi uma figura de primeiro

plano, é a obtenção do conhecimento, o “virar-se” para dentro de si mesmo em busca

das respostas/soluções para os problemas existenciais. A segunda transmutação é o

amor, que Fausto, rejuvenescido por Mefistófeles, sente por Margarida. A terceira é a

do arrependimento, do remorso por ser o responsável pela morte da jovem, da sua mãe e

do seu irmão. A última transmutação é o sentimento de humanitarismo que o invade e o

leva a sonhar com um país novo, paradisíaco, onde haja, apenas, felicidade, aquela que

pode chamar a atenção das Potências Celestiais.

Mas a Alquimia do Fausto foca outro aspecto. Na câmara gótica onde Fausto

passou toda uma vida em busca do conhecimento e de onde saiu na companhia de

Mefistófeles, o seu fâmulo, Wagner, sem qualquer auxílio demoníaco, prosseguiu os

estudos e conseguiu criar um Homúnculo

46

. Com esta figura Goethe mostra que é

dentro de nós que se encontra a via que conduz à iluminação espiritual, mas que para a

seguir é necessário aceitar-se a componente feminina do nosso ser, a famosa anima de

Jung

47

. É muito significativo o facto de Fausto estar inconsciente ou ausente em todas

44

Cf. vv 8846 a 9058

45

Stürm und Drang (tempestade e ímpeto) foi um movimento que floresceu na Alemanha entre 1770 e

1784, contra o racionalismo postulado pelo Iluminismo do século XVIII e a poderosa influência do

classicismo francês na cultura europeia. Os prosélitos deste movimento rejeitaram a literatura e a

sociedade do Ancien Regime e voltaram-se para a poesia de Homero, para a Bíblia luterana e para os

contos e histórias do folclore nacional nórdico.

As personagens mais notáveis deste movimento foram Johann Gottfried Herder (1744 - 1803),

Friedrich Schiller (1759-1805) e, naturalmente, Goethe, autor do primeiro grande drama saído do Stürm

und Drang, Götz von Berlichingen mit der Eisernen Hand (Götz de Berlichingen com a Mão de Ferro)

(1773).

46

O conceito do homúnculo parece ter sido usado pela primeira vez por Paracelso para designar uma

criatura que tinha cerca de 30 cent+imetros de altura e que, segundo ele, poderia ser criada por meio de

sémen humano posto numa retorta hermeticamente fechada e aquecida em esterco de cavalo durante 40

dias, após o que se formaria o embrião..

47

Carl Gustav Jung (1875-1961), o criador da psicologia analítica, foi um dos mais prestigiados

psiquiatras e um profundo conhecedor do Ocultismo, nomeadamente da Alquimia espiritualista, da

Astrologia e do Simbolismo, sendo por vezes apontado como um possível iniciado da Rosacruz.10

as cenas em que aparece o Homúnculo; é o desprezo pelo seu lado feminino e a sua

opção pela via diabólica que lhe levanta todas as dificuldades, mas que no final o seu

humanitarismo permitiu-lhe vencer.

M

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